segunda-feira, 4 de março de 2013

«O dinheiro não tem ideias»


"O dinheiro não tem ideias"
 (…)O meu Portugal formoso
Berço de latifundiários
Onde um primeiro-ministro
Já manda à merda os operários
Já hoje muito maroto
Se diz revolucionário
E faz da bolsa do povo
Cofre-forte do bancário(…).

Trata-se de um excerto da música Chula da Póvoa, de Zeca Afonso (1976) e eu não sou comunista. Sou portuguesa, pediram-me para falar de dinheiro e logo aquelas palavras me assaltaram. Nos tempos livres, sou co-autora do blogue Má Despesa Pública, no qual eu e o jornalista Rui Oliveira Marques (re)publicamos informação oficial sobre maus exemplos de gestão pública, de indevida afectação dos recursos de todos os portugueses por parte dos responsáveis pela gestão pública, considerada em todos os seus níveis. Mesmo em tempos de troika, é um erro considerar que dá trabalho alimentar um blogue com informação diária sobre má despesa pública portuguesa. Basta consultar o portal BASE-Portal Oficial dos Contratos Públicos - para perceber como a maioria do poder político esvazia, grão a grão, o saco alimentado pelos nossos impostos. A leitura do Diário da República permite esquecer, por momentos, que o Estado é pobre e vive de dinheiro emprestado, tendo em conta, p. ex., os concursos de empreitadas de obras lançados pelas autarquias, as nomeações governamentais que parecem não ter fim e, ultimamente, as inúmeras promoções de pessoal da área da Defesa. Depois, temos os relatórios e auditorias do Tribunal de Contas (TdC), documentos que atestam (se dúvida houvesse) a incompetência e irresponsabilidade do poder público no exercício das suas funções. Quando o TdC analisa aquisições de bens ou de serviços é fácil adivinhar algumas das suas (recorrentes) conclusões: “violação dos princípios da contratação pública, como a transparência, a concorrência e a boa fé”. E, infelizmente, o tribunal também detecta amiúde que “o interesse público não foi devidamente acautelado” por parte da entidade pública fiscalizada. Não olham aos meios, não olham às leis. A história é conhecida mas parece ser esquecida, com a ajuda da própria Justiça portuguesa - a melhor amiga dos políticos malfeitores.
Vivemos num país ao qual as Fundações consumiram mais de mil milhões de euros nos últimos 3 anos, que prevê ter encargos de 9,11 mil milhões de euros até 2028, só com as PPP rodoviárias, que comprou um banco (BPN) com um buraco financeiro que pode chegar aos 7 mil milhões de euros e que, não obstante, está a injectar mais de 1,1 mil milhões de euros num (outro) banco privado, o Banif. Fomos o único país europeu que reconstruiu/remodelou dez estádios para o campeonato europeu de futebol. Mais de mil milhões de euros de investimento público em estádios que estão às moscas (Leiria, Coimbra, Aveiro e Algarve) e que deixaram as autarquias endividadas por mais de duas décadas. O Estádio Municipal Dr. Magalhães Pessoa, em Leiria, está à venda e não encontra compradores. Só em juros, consome quase 6 mil euros por dia aos cofres do Município. E da Parque Escolar nem consigo falar. Só a pequenez dos responsáveis nacionais justifica estas e outras obras públicas, como a marinha do Lugar de Baixo, na ilha da Madeira, que custou mais de 100 milhões de euros, foi inaugurada em 2004 mas continua inoperacional, a piscina olímpica que a câmara municipal de Braga decidiu ter mas cujo projecto teve de abandonar depois de nele torrar mais de 8 milhões de euros, o Jardim de Infância de Macieira, em Barcelos, de quase meio milhão de euros, que continuava fechado volvidos dois anos sobre a conclusão das obras porque foi construído no meio de um campo de milho sem acessos, o Centro Municipal de Canoagem de Águeda, com um custo de quase 400 mil euros, foi inaugurado em 2004  e um ano depois teve de fechar portas porque foi construído em cima de terrenos que não eram propriedade do Município. E depois existem outro tipo de despesas, de menor monta, mas que jamais deveriam existir como a viagem da mulher do presidente da autarquia de Boticas a New Jersey, EUA, paga pelos cofres da câmara municipal, ou os brinquedos que as autarquias e empresas públicas teimam em dar aos filhos dos seus funcionários, prática comum em Almada, Amadora, Oeiras, p ex., os pins de ouro que a CP continua a comprar. Nesta matéria, nunca devemos esquecer o exagerado número de veículos do Estado e sua utilização indevida, como o caso do Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Torres Vedras que tem direito a viatura e motorista particular para as suas deslocações diárias, entre Torres Vedras e Loures, onde reside. O motorista desloca-se de propósito de Torres Vedras a Loures todas as manhãs e à noite o motorista e viatura fazem o percurso inverso e voltam para Torres Vedras.   Como é óbvio, o motorista tem que fazer horas extraordinárias e, além do combustível, os custos de 4 portagens diárias na A8 também são pagos pelos contribuintes. Todos sabemos que Portugal está entregue a pessoas que, na sua maioria, encaram o serviço público como um meio de enriquecimento material e que não se coíbem de o esconder, como o recente caso da ex-directora da empresa municipal Águas de Santarém que se demitiu pouco tempo após ter tido conhecimento de uma ordem de serviço que proíbe a utilização dos carros de serviço para uso pessoal. Esta ex-dirigente pública utilizava a viatura de serviço nas suas deslocações diárias entre Santarém e Cascais, onde reside, apesar de auferir 4500 euros mensais.
Os exemplos de desperdício e má gestão do nosso dinheiro abundam apesar da informação disponível relativa às despesas do Estado se mostrar, não raras vezes, insuficiente e opaca. Nem todas as entidades publicam todos os contratos públicos no site legalmente destinado para o efeito (BASE), em clara violação da lei. Aliás, nesta matéria, o exemplo também não vem de cima, pois a própria Presidência da República não presta cavaco sobre a forma como gasta os cerca de 16 milhões de euros anuais que leva do orçamento de Estado. Sabe-se que emprega mais pessoas do que o Palácio de Buckingham e que conta com 52 viaturas de serviço. E quando publicam os gastos, muitas das entidades não o fazem no prazo devido, sem que para tal tenham justificação legal. Lisboa é nisto (péssimo) exemplo: a autarquia publicou os contratos de prestação de serviços dos assessores dos vereadores decorridos 3 anos sobre a respectiva adjudicação.
Sem transparência na gestão pública os cidadãos não sabem como o dinheiro dos seus impostos é aplicado e não podem exercer o seu poder/dever de controlo da gestão pública, exercício vital a uma democracia saudável. Um Estado pouco transparente é um bom ninho para a corrupção e esta é uma das causas do empobrecimento dos Estados e, consequentemente, dos povos. Em termos europeus, só podemos dizer que temos um Estado menos corrupto do que a Itália e a Grécia. O primeiro país tem máfia, o segundo encontra-se completamente desestruturado, desfeito institucional e socialmente. A corrupção e a crise andam de mãos dadas e Portugal está entre os países europeus que pior controlam a corrupção e não se vê o poder político a fazer algo de relevante utilidade prática para combater esta realidade.
Por outro lado, o combate do mau uso do dinheiro público também requer legislação transparente, de clara interpretação e exequível, o que não acontece na maioria dos casos e em matérias essenciais.  Uma legislação defeituosa a somar à cultura nacional de contorno e desrespeito das normas constitui uma excelente fórmula para a violação do interesse público por parte dos responsáveis pela gestão do país. E todos sabemos que as consequências da gestão pública danosa são poucas e o efeito prático delas é nulo. Os responsáveis voltam a ser eleitos e/ou nomeados. E nós ficamos calados/parados e, assim, tornamo-nos cúmplices de quem nos faz mal. Podemos fazer alguma coisa para mudar? Eu acho que podemos fazer tudo, a começar por perder o medo de apontar o dedo a quem empobrece o seu povo. À austeridade político-financeira que nos dão devemos responder com austeridade cívica, exigindo transparência governativa, leis decentes e a condenação da incompetência, da irresponsabilidade e da negligência no exercício de funções públicas. 
Aquilo que o país mais precisa o dinheiro não compra e somos todos responsáveis por arranjá-lo: políticos de bom senso. E já vamos tarde. 

Lisboa, 12.01.13
Bárbara Rosa

Texto integral para o jornal "O Espelho", #2, 02.03.2013


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