segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Hino aos ajustes directos


Somos o país dos ajustes directos. Dos ajustes directos aos amigos, às comadres, aos sócios, aos parceiros, aos boys, às amantes e aos incompetentes. Em Portugal é possível que a presidente de uma junta de freguesia contrate por ajuste directo a pessoa que lhe sucedeu na associação onde ela era antes presidente. É possível que uma instituição cultural municipal trabalhe com uma empresa que tem sede na casa da directora dessa mesma instituição. É possível que uma junta de freguesia arrende apartamentos do presidente da própria junta. Ou então que uns Serviços Municipalizados contratem uma sociedade de Revisores Oficiais de Contas antes desta mesma sociedade ter sido criada. Tudo por ajuste directo.

Não pode haver maior incentivo ao empreendedorismo que este. Ministérios, direcções-gerais, universidades e autarquias já contrataram empresas mesmo antes de elas existirem legalmente. Somos o país dos boys, girls, filhos e filhas que enlameiam as nossas câmaras, as juntas, os institutos públicos. Perante este cenário, a minha solidariedade com o ex-secretário de Estado Paulo Júlio, que foi agora condenado a dois anos e meio de pena suspensa por beneficiar num concurso interno um primo, quando era presidente de câmara de Penela. Imaginem como ficariam os tribunais deste país, caso todos os casos de contratação e promoção de boys dessem azo a uma investigação judicial.

Somos o país do ajuste directo político. Já escrevia Salazar que não tinha outra alternativa que não assumir o cargo de ministro das Finanças. Mas ao longo da nossa democracia multiplicaram-se os messias, os melhores entre os melhores e os mais bem preparados. Foi assim com Cavaco Silva, o homem predestinado. Agora parece que é a vez de António Costa. Está escrito nas estrelas. Inevitável. Incontornável. Mais um ajuste directo da nossa democracia. O mesmo mecanismo que manteve Alberto João Jardim no poder. Deixou a Madeira afogada em dívidas e em obras faraónicas. Mesmo assim, terá direito a um museu pago pela fundação que recebe dinheiro desse mesmo governo regional. Tudo legal e tudo normal.

Somos o país do ajuste directo à megalomania. É a junta de freguesia que contrata por ajuste directo uma empresa para gerir queixas dos cidadãos. É o TGV porque sim. É o Metro de Coimbra que 20 anos depois, repito, 20 anos depois e 100 milhões gastos continua a não sair do papel. Aliás, o Tribunal de Contas disse que o projecto avançou sem qualquer estudo de viabilidade técnica, económica e financeira. Somos o país que constrói em vez de estudar. E muitas vezes, quando estuda, as conclusões parece que são escritas à medida do promotor. A Expo’98 teve 9,7 milhões de visitantes. Segundo os estudos, devia ter recebido 14 milhões de pessoas. Ou seja, todo o projecto foi pensado para uma escala que não teve. Por isso, estamos a pagar agora as contas da Parque Expo e temos um Pavilhão de Portugal fechado.

Outro exemplo de megalomania: o aeroporto de Beja. As obras custaram 33 milhões e neste momento o aeroporto não tem qualquer voo comercial. Segundo os estudos, este ano, 2015, devia já estar a receber um milhão de passageiros... Para a ilha de São Miguel foram planeados dois museus de arte contemporânea. Um lançado pelo governo regional PS e outro pela Câmara de Ponta Delgada PSD. Depois há Lisboa, que parece ser a capital dos projectos milionários que não saem do papel. A EPUL, a empresa municipal que devia construir casas para jovens e a preços baixos, gastou 1,6 milhões por um estudo encomendado ao arquitecto Jean Nouvel para a zona de Alcântara. Por sua vez, a Câmara pagou 1,9 milhões a Frank Gehry por projecto para o Parque Mayer que não passou do papel. Agora é a Câmara Municipal de Oeiras que vai construir o novo edifício para albergar os serviços municipais. Vai ser uma torre de 15 andares e vai custar 28 milhões de euros. Tudo legal e tudo normal.

Tão normal como comprar a cidadania portuguesa. Deixo três sugestões para as imobiliárias especializadas em vistos gold. No Porto, a Casa do Cinema, que era para ser inaugurada aquando do Porto 2001 e só foi terminada dois anos depois, está à venda por 1,5 milhões de euros. Segunda sugestão: estádio de Leiria. Está à venda por 63 milhões. Está como novo. É que o estádio, com 30 mil lugares, tinha uma ocupação média de apenas mil espectadores, e está agora fechado. Terceira sugestão: Pavilhão de Portugal.

Para onde nos podemos voltar? Para a Presidência da República? A mesma que garantiu que ia começar a publicar os contratos e os ajustes directos e que até hoje não cumpriu? Para o Banco de Portugal? O mesmo que comprou uns 30 automóveis topo de gama por ajuste directo? Para a polícia? A mesma que que teve de anular um concurso por duas vezes porque na primeira prova os agentes foram apanhados a copiar e na segunda um em cada cinco candidatos teve 20 valores porque o enunciado estava disponível em fóruns online? Parece que a única solução é contratar e promover os polícias por ajuste directo.

Segundo o Relatório de Contratação Pública em Portugal, em 2012, 63 por cento da aquisição de bens e serviços por parte de entidades públicas era feita através de ajustes directos. Os restantes 37 por cento dizem respeito a concursos públicos. E é graças aos ajustes directos que temos empresas criadas à pressa. Não há concorrência, transparência e mérito nestes processos. Tudo legal e tudo normal. No fim pagamos todos nós.

Texto de Rui Oliveira Marques, co-autor do Má Despesa Pública, lido durante o encontro Portugal, Quem És Tu?, organizado por Fernando Alvim, esta sexta e sábado em Lisboa

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